DE RESTO EU NÃO SONHO, EU NÃO VIVO, SALVO A VIDA
REAL.
Bernardo Soares
De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de (as) sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente [...] é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne.
Por mais que se viva a vida em plena [...] e triunfante ação, nunca desaparecem o (...) do contato com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de
todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo
menos, pode conceber-se vendo-o e passando e isso é (...)
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.
_______________ Livro do Desassossego por Bernardo
Soares. Vol.II. Fernando Pessoa.
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