ENCANTAMENTO
Das Mil e Uma Noites libanesas
Era tempo de
inverno naquele mundo longínquo e tão misterioso.
O dia rapidamente se esvaia, com a noite
chegando em rápido caminhar.
O palácio do Sultão depois da
azáfama diária procurava se aquietar. O
Grão Vizir já havia se retirado levando consigo
as ordens recebidas que seriam cumpridas no raiar de um novo dia. Os
eunucos e as odaliscas depois de tanto afã, já estavam em seu aposentos e somente os escravos ainda trabalhavam, mas
já se podia sentir o silêncio que ia chegando bem devagarzinho.
Naquele lusco fusco que se
instalava, a princesa Scherazade com seu
olhar penetrante, a tudo observava.
Contudo, estava apressada e o som dos muezim estrondando do alto dos
minaretes faziam-na a lembrar a cada
instante de suas obrigações.
Caminhava assim rapidamente em
direção aos aposentos reais. Acendeu as velas, conferiu a manta de seda sobre a
cama com o baldaquim, apalpou as almofadas, observou as frutas colocadas sobre
a bandeja de ouro, inclusive as tâmara adocicadas, os variados tipos de
yogurtes e o vinho ali existente, verdadeiro néctar dos deuses tudo para seu amo e senhor. Correndo o olhar pelo
ambiente, resolve cerrar mais um pouco as grossas cortinas de veludo carmim,
que mesmo sendo pesadas, ainda deixavam passar o vento frio, que como um
chicote, açoitava a noite fazendo
rodopiar a fina areia vindo do grande
deserto escaldante, desde tempo imemoriais. Num relance do olhar, vê as dunas
que são imensas ondas amarelas e alaranjadas sob um céu de aquarela. O sol é
uma imensa bola laranja mergulhando atrás dessas dunas. Cuidando dos camelos,
já sob as estrelas que começam a brilhar, beduínos que se ajoelham lado a lado,
pressionando a testa na areia morna, dado graças a Allah, que lhes permitiu
sobreviver mais um dia em um ambiente tão hostil. Estes homens possuem um
código de moral puro nascido da necessidade de sobrevivência num dos climas
mais rigorosos do planeta. Acreditam que tudo o que há de melhor nos árabes
veio do deserto.
Nesse momento ela passa a entender o
laço profundo que une a fé e a paisagem, tudo etéreo como um manto de fumaça...
Scherazade se prepara para a
espera, a qual podia ser muito longa.Resolve sentar ao rés do chão,
entrecruzando as sua pernas jovens, morenas e roliças, apesar das variadas
almofadas que ali existiam. Ajeita um pouco mais o véu sobre a sua cabeça e se
põe a rezar, elevando as mãos aos céus
em contínuo agradecimento. A cada movimento, as pulseiras de ouro parecem
tremular sob a luz mortiça do ambiente. A história de cada pulseira é para ela
inesquecível, pois corresponde a um presente dado, por cada noite de amor. E
muitas noites já aconteceram.
Então ela ergue os olhos e rezando
baixinho se dirige a Allah: "Não há outro Deus, a não ser Allah e Maomé é
seu único profeta." A oração, verdadeiro mantra é contínua, até que ela
começa a escutar passos que se aproximam. Os
passos que ecoam são de um homem
ainda jovem, passos apressados, rápidos, e então , ela se levanta e com graça,
sorri languidamente e se inclina para o
seu senhor, o todo poderoso
Sultão Ali El Rachid, o grande dominador do inimaginável Império Turco Otomano.
Tudo ia acontecer, como sempre
vinha acontecendo. Ela sabia e gostava.
Tudo vai se repetir... e ela
com o coração tomado de emoção, enlevada, se deixa levar para o mundo dos sonhos e do êxtase, em
um mundo cor de rosa e lilás com cheiro de flores e sabor de almíscar.
Assim outra noite... Outra vez
mais... ela cumpria o seu destino como a
favorita do sultão e como mandava o costume e a tradição.
Depois... muito tempo depois, ela se prepara para contar uma história
com muitas façanhas, guerras e heróis lendários.
“Era uma vez, uma terra de muito
mel e leite abundante, terra onde os deuses moraram mas também terras dos
homens, onde a tradição se fazia milenar. Este lugar é o Líbano, Líbano eterno, país dos cedros, país do
acolhimento. Esta é a terra do perdão e da indulgência, terra de asilo e de
refúgio, encruzilhada do Oriente e do Ocidente.
De um terra onde havia um oásis
, com uma fronteira desértica, vê-se uma estrada que serpenteia através das
gargantas rochosas das montanhas do Monte Líbano, até um arejado platô de
muitos metros acima do nível do mar. Lá,
por um momento, a estrada parece ficar suspensa entre dos mundos. Atrás estão as encostas orientais, ásperas
secas e a abóboda severa e implacável do céu do deserto. A frente, estão as
tentações de uma espécie de paraíso, sedutor, onde a estrada se precipita em
direção ao Mediterrâneo que está lá muito abaixo, parecendo acenar e chamar através de sua tênue
cerração.
O povo que ali habita carrega no
sangue uma herança cultural e racional.
Nesta terra viveram os Fenícios e os
múltiplos caminhos de sua expansão.Não devemos ir muito distante procurando a
origem dos Fenícios, pois eles são autoctonos,
são do Líbano mesmo. Toda a
eternidade, eles sempre viveram lá. Sua idade é a idade do universo, onde
nasceram com a própria terra... Foram membros de uma civilização audaciosa e
cheia de recursos que velejou e comerciou pelo antigo Mediterrâneo. Também
fundaram escolas, que se tornaram famosas, onde ensinavam principalmente
astronomia, matemática, navegação e leis, como construíram magníficos palácios
e templos. E não é possível que se
fossem nômades, vindos do deserto, chegassem tão rapidamente a serem
construtores de cidades. Essa articulação que mais tarde veio a se formar entre dois mundos, essa plataforma giratória
é o fruto de um destino excepcional. Foi necessária a mão mágica da história,
que misturou em cinquenta séculos, os
homens e as ideias.
Uma de suas principais
conquistas foi o chamado asilo, como também o poder de receber como refugiados
aqueles que fugiam das perseguições.
Essa é a lenda da história
dos Fenícios e uma lenda é a história que foi esquecida, mas que precisa ser
relembrada.
Sua cidade mais importante
foi Tiro, por volta de 500a.C., e que era rodeada de muralha com grandes torres,
cujo rico solo era irrigado pela fecundas fontes vindas das montanhas
libanesas. Esta foi a época em que os navios fenícios sulcavam os mares para
fundar colônias permanentes chegando também até a África, onde fundaram a
cidade de Cartago.
Os dias e as estações dessa terra verdadeiramente encantada
enchem a todos de alegria.
Na primavera há o perfume
de flores e os frutos que nascem aos
borbotões: nêsperas da cor do âmbar
amarelado e os laranjais em flor, com morangos ruborizados e damascos cobertos
por finas penugens., lembrando asa de anjinhos a voltear na imensidão do
espaço.
No verão as melancias se
abrem como caixinha de surpresas e os melões mais parecem um cofre de
joias e as suas romãs como pérolas a enfeitar.
Seu outono tem os poentes
mais belos e coloridos, com suas longas palmeiras, verdadeiro ninho dos
pássaros que sabem cantar. E o mirto, a azeitona verde e a preta são donativos
belos demais.
Para o inverno, há nos cumes
das montanhas a neve que se faz eterna como o Cedro do Líbano que se faz
milenar com seus frondosos galhos dando sombra e guarida para todos que ali
estão.
Desta terra, quando as vozes
do passado despertam, elas não se calam
mais.”
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Scherazade agora observa
que o poderoso sultão está a dormir, placidamente, esquecido das guerras , das
lutas dos cristãos e até mesmo dos próprios mouros. No sonho, ele só vê a sua
bandeira desfraldada e o seu imenso
Império crescendo, esperando que seja para sempre eterno.
Scherazade cautelosamente se aproxima e
meigamente acaricia seus bastos cabelos negros,
ainda não orvalhado pela passagem dos anos.
Então agora, ela, também se prepara para
descansar e reza ardorosamente pedindo que
Allah a proteja por todas as noites vindouras e com muitas outras
histórias mais, que possam agradar e
enfeitiçar o seu sultão.
Uma brisa amena penetra nos aposentos
bebendo o orvalho da manhã serena que vai logo se aproximando.
De outros tempos, de outras eras, das histórias de Scherazade e as suas Mil e Uma
Noites, para todo o sempre, lá na antiga cidade mítica e encantada muito além dos caminhos de Bagdá...
Assim estava escrito nas
estrelas!
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Um pouco sobre a autora
Matilde Carone
Slaibi Conti é professora da Faculdade de Direito da Universidade Salgado de
Oliveira (UNIVERSO - Niterói-RJ), Professora do Departamento de Monografias do
Curso de Graduação da Universidade Salgado de Oliveira, Artista plástica, Presidente
do Cenáculo Fluminense de História e Letras, membro da Academia Niteroiense de
Letras, vice-presidente do IHGN e membro de diversas entidades pelo Brasil. A Câmara
Municipal de Niterói no dia 23 de outubro, concedeu-lhe o Título de Cidadã
Niteroiense.
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COMENTÁRIOS
Sim Matilde!O Líbano encantado, misterioso,sofrido,valente e sempre marchando com a crença das mil e uma noites de glória.Parabéns por tão belo dizer.Sinto orgulho de ser descendente direta por parte de mãe.O mesmo orgulho via nos olhos e voz de meu primo irmão Dr.Edgard Stephá Venâncio quando falava de nossa família, e do nosso tio Fharid Sthephano que pelo mundo dava palestras e que o escritor Umberto de Campos o citou em seu livro "Sepultando seus Mortos".
Felicidades.
Angela Gemesio.
Felicidades.
Angela Gemesio.
Ângela Gemesio,
atriz, escritora e acadêmica.
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Um comentário:
Ângela
fiquei extremamente emocionada com o seu comentário e também com o elogio ao Líbano, terra essa conhecida desde priscas eras, pela abundância do leite e do mel,e onde os antigos Fenícios viviam. Grande abraço acadêmico.
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